É
que tinha uma réstia de luz entrando pela janela. Meu coração
pulsava fraco com essa claridade, esperando a escuridão para se
libertar. Na fraca luz mirei meus olhos pelo espelho, negritude
rodeada de uma gosma branca, nos lábios descascados, aquele sorriso
de quem entende da malícia. Os dentes quase invisíveis na
escuridão, as axilas molhadas, o suor acima no buço, o cobertor
esquentando as costas, e o frio nos dedos dos pés, tudo denunciando
meu medo da luz. Na cabeça os piolhos em polvorosa, brigando pelo
meu sangue, ou caspa devorando-me em coceira, mas não coço, imagino
seus dedos mornos sobre mim, brincando comigo no meio da noite,
mordendo pra longe esse medo, de olhos fechados.
É
que essa luz denuncia, lábios inferiores mordidos, língua sobre
lábios secos, prelúdio de sua chegada, saliva de sua presença,
angústia de sua alma. Fico já em guarda, sem calcinha, sem calça,
sem meia, sem pudor, pernas abertas, frêmito no corpo todo,
esperando a escuridão tocar minhas partes, preencher meus vazios
expostos pela luz, meu ventre inchado, a criança mexendo, sua
chegada silenciosa.
Eis
que da luz não há mais réstia, o cativeiro colorido do sangue
delas desaparece ao meu olhar. A noite chegou contigo, e veio
arrebatadora. Posso sentir sua respiração sobre mim, além do vento
com o abrir da porta. Ao longe o uivo do cão, mais perto a sirene de
polícia, e cá você, pronto para mim, pronto para me satisfazer,
pronto ereto.
Nessa
escuridão ouço apenas o som da corrente batendo contra a parede, no
ritmo do nosso amor desvairado. Mal posso conter meus suspiros, você
entra em mim com força, seus trancos raivosos rivalizando com o
metal. Tudo às escuras alcançamos o êxito, engolimos nosso amor
dentro de nossa imensidão, o gozo escorre perna abaixo, o suor
inunda minhas papilas gustativas, um clarão sinistro e o cigarro
está acesso, o olho vermelho passa de boca em boca, uma dança
macabra refletida no espelho.
A
noite é passageira, quando do sol querendo despontar estou sozinha,
rodeada de imundícies, saciada de nosso amor selvagem. Quando da
manhã meu coração pulsando fraco, percebo na parede, fruto e feto
de nosso amor, os ossinhos pendurados, mortos de fome talvez, mas
ainda mortos. Conto seus corpos, seis, sete, vinte? Quem sabe, estão
aí me encarando, evito seus olhos e questionamentos, busco em meu
ventre uma vida pulsante, ainda vive. A luz faz-me ver, com olhos
escancarados, o horror ao qual estou acorrentada, uma parede colorida
em sangue arterial, um teto decorado com ossos infantis, um espelho
mais cruel que a realidade.
Fecho
os olhos com força. Buscando a escuridão atrás das pálpebras, mas
a negritude é colorida, luzes malditas pintam meus olhos, piscam
sobre minha desgraça. Falta o ar nessa hora, chorar é para os
fracos. Anseio pelo fim dessa luz abrasadora, a criança muda de
posição, eu mudo de lado no chão duro. Um gole de urina podre, um
pedaço de fungo e o café da manhã vai me sustentar até o banquete
da noite. Os ossos tremem de medo, medo pensam eles, desejo já sabe
o cérebro, apenas desejo. Que me venham às entranhas o carneiro pro
abate.
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