sexta-feira, maio 9

Conto: Sangue na escuridão

No sereno de uma madrugada fria, meus dedos dos pés buscavam refúgio numa meia furada. As pernas estavam envoltas com calças de flanela e os órgãos genitais tinham mais um conforto, fraldas de plástico egípcio. Mesmo assim, minhas bolas estavam geladas. O tórax estava revestido de uma camisa de político da última eleição, “vote em mim, para o bem e para o mau”, e sim, ela tinha esse erro de português mesmo. Busquei conforto num cobertor azul pirata, como dizia mamãe, e me escondi da madrugada dentro do meu quarto, com mil velas acesas e um castiçal. Na janela, tijolo, na porta, pregos, nas paredes, tinta branca.
Estava me borrando de medo, medo da noite. Só se ouvia um uivo lá fora, uivo do vento e da árvore torta ao peso de seu soprar, o cachorro no quintal, ladrando para almas penadas, ou gatos, que é a mesma coisa, e o sussurro dos demônios que vieram para me atormentar.
Levantar da cama é um suplício. Um gole de água e dois comprimidos boca abaixo. E já posso sentir a calmaria começar dos dedos dos pés para as bolas e o cérebro. Tento correr para a cama, mas ela está tão longe, tão pequena, tão distante, que tenho vontade de cantar 'so far away'. Depois nada, a escuridão veio me buscar em suas asas compridas.

Eu não acordo, mas sou acordado. Quando passa o efeito das minhas pílulas de placebo, eu me pergunto, com certa resignação, o motivo de não deixar a maldita ao lado da cama, devo ter desenvolvido certo prazer irracional de dormir no chão, e as malditas bolas geladas.
Não, eu não acordei. Fui acordado por ela, de nome escuridão, que há contecido com minhas velas? O tremor já começou pela garganta, o suor gelado saindo dos poros mofados, as lágrimas querendo escorrer dos olhos, os dentes numa dança frenética de cima a baixo, as unhas buscando a palma da mão, e o medo visceral manifesto numa vontade incontrolável de defecar. Não, não. Não me atrevo a me mover, tenho muitas fraldas. As bolas dos olhos estavam criando vórtices em sua órbita, procurando luz na senhora negritude. E encontrou, atrás de mim tinha uma única vela acesa, bem fraquinha, quase morrendo. Tão rápido quanto um homem dando à luz seu filho intestinal poderia se mover, busquei conforto nesse pedaço de luz que entrava nos raios da minha visão, mas eis que, dei com ele, o corpo da garganta cortada me sorria com um rio de sangue fluindo dela. E me reconheci naquele corpo, mais jovem talvez. E o sorriso se expandiu numa careta, e ele andou para mim. Busquei pela pílula, mas dessa vez ele foi mais rápido que eu, jorrou seu sangue sobre mim, engoli um pouco, vomitei o resto, prostrei-me aos seus pés, pedi clemência, só mais uma vez.

2 comentários:

  1. Uau! Que leitura gostosa! É trágica, engraçada e terrorífica ao mesmo tempo. Interessante acerca das velas... Elas sempre se apagam quando lhes queremos acesas! Confesso que amo o jeito que você aborda os temas.

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    1. Tudo se apaga quando precisa ficar aceso! rs Obrigada pela visita!

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